sexta-feira, 23 de abril de 2010

Elogio de um Prazer Clandestino

"Felicidade Clandestina", de Clarice Lispector, é uma pequena obra-prima que pode ser considerada, também, como um verdadeiro elogio da leitura e do livro. Prazer clandestino - Valéry Larbaud já o chamou de "vice impuni" - o ato de ler desafia às terríveis contingências provocadas pela "cultura" do imediatismo visual e do desprezo à quietude da reflexão. Neste dia em que comemoramos o Dia Mundial do Livro, a leitura do conto de Clarice assume tons ainda mais urgentes e sublimes e serve como ato de celebração espiritual.

Originalmente publicado no blog Renascence Ballet, o artigo "A Mulher e seu Amante", de autoria de Francisco Miguel Spínola, é uma bela invitation à leitura de "Felicidade Clandestina" e à descoberta da literatura desta figura maior da expressão literária brasileira. Le Livre Messager agradece ao autor pela autorização concedida para a publicação de seu texto em nosso espaço de difusão cultural; quem quiser escrever para Francisco Miguel Spínola e conhecer outros trabalhos seus, basta enviar um e-mail para fmcamara@ig.com.br.


A Mulher e seu Amante

Francisco Miguel Spínola

O conto "Felicidade Clandestina" está inserido no livro homônimo, publicado em 1971, que possui ao todo 25 narrativas, muitas das quais verdadeiras obras primas, tais como "Os Obedientes", "Os Desastres de Sofia" e "A Mensagem". De enredo muito simples o texto é repleto de sensações, angústias, revelações e de difíceis prazeres, assim como boa parte da obra de Clarice Lispector. Como é constante em suas narrativas, o ambiente externo pouca importância tem em comparação com o universo indecifrável do interior de suas personagens.

Possuindo um conteúdo notadamente autobiográfico, o conto relata uma passagem da infância de Clarice, ainda na cidade de Recife. Narrado em primeira pessoa, a protagonista-narradora conta sua relação com uma colega, cujo pai era dono de livraria. Descrita a colega como uma garota "gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados", a escritora logo informa ao leitor que essa moça não tinha nenhum interesse pelos livros que seu pai vendia ou mesmo que possuía em sua casa.

A narradora, que já era dotada de um profundo gosto pela leitura, descreve a "crueldade" com que era tratada pela colega, que invariavelmente lhe prometia livros emprestados que jamais chegava a entregar e que, pior ainda, nem sequer os lia. Até que, como que por acaso, a filha do livreiro informa que possui "As Reinações de Narizinho", de Monteiro Lobato, o que despertou enorme desejo por parte da protagonista, que o descreve de maneira sensual na seguinte passagem: "era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o". Fica claro o papel da atividade literária como verdadeiro objeto de amor para a autora, no sentido mais intenso do termo, como razão de viver, como atividade missionária, doação e às vezes até como maldição.

A partir desse momento, a maldosa filha do livreiro demonstra todo o seu sadismo e tirania, fazendo com que a narradora lhe fizesse visitas diárias para obter o objeto de desejo que, invariavelmente, lhe era negado com o mesmo argumento de "estar o livro emprestado a outra menina", mas que no dia seguinte ele estaria disponível. Fica estabelecido uma rivalidade entre ambas, uma disputa pelo ser amado, objeto de real amor por parte de uma, e da simples posse interesseira da outra. Até que a esposa do livreiro interveio, já curiosa pelas constantes visitas da mesma menina a sua casa, e repreendeu sua filha, emprestando em seguida o livro "pelo tempo que quisesse". Em verdadeiro estado de êxtase, a narradora leva o livro para sua casa, onde saboreia em doses homeopáticas o delicioso processo de leitura, criando "as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia". O conto encerra-se, com forte conteúdo alegórico, na afirmação de que "não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante".

Vários contos do livro Felicidade Clandestina possuem traços autobiográficos inegáveis, como, por exemplo, "Restos do Carnaval", "Coma, Meu Filho" e "A Legião Estrangeira". Clarice escrevia de forma absolutamente pessoal e deslumbrantemente inquietante. Há uma inesgotável energia dentro da aparente apatia de suas criações; todos os personagens buscando subir a tona, afastar os escombros, tirar a terra, todos ansiosos por descobrir e interpretar o marasmo do quotidiano, um sentido para a existência. Todos em busca da revelação. Acusada de escrever textos demasiadamente herméticos, Clarice respondia "Eu, hermética? Hermética é a vida".

Nenhum comentário:

Postar um comentário