sábado, 17 de outubro de 2009

Uma Reflexão acerca da República no Pensamento de Rousseau


Everton A. Pereira

Temos diante de nós o que poderíamos chamar a obra-prima de Rousseau, e com toda certeza um dos escritos mais importantes sobre a discussão acerca da república e o estado moderno, ou seja, temos diante de nós O Contrato Social, considerado por muitos o texto que lançou as bases para a consolidação da revolução francesa (1789 a 1799).

Rousseau inicia o primeiro livro do contrato social com uma constatação provocante: “O homem nasceu livre, e em toda parte se encontra sob ferros”. Evidenciando desta forma quão paradoxal é a condição humana. Em seguida Rousseau indaga: “Como é feita essa mudança? Ignoro-o. Que é que a torna legítima?” Assim temos a constatação (o homem é livre) e a questão fundamental deste primeiro livro, ou seja: O que legitima um homem (um particular) ser senhor de outrem, ou de todo um povo, se todos os homens nascem livres? Há neste primeiro livro uma dialética daquilo que Rousseau denominou natural com o que denominou convencional. Rousseau está de acordo com Aristóteles de que a família “é a mais antiga de todas as sociedades, e a única natural” e em contraposição a esta sociedade natural Rousseau contrapõe a sociedade convencional, ou simplesmente o estado. Estado este tomado em seu texto mais particularmente como sendo o regime monárquico, no qual um único homem, em particular (o monarca) é o senhor dos homens, como era no passado. Rousseau realiza tal distinção, dizendo que no passado os monarcas eram chamados de reis dos persas, dos citas e dos macedônios, enquanto que os monarcas, seus contemporâneos, chamam-se habilmente, de reis de França, de Espanha, de Inglaterra etc. Os monarcas contemporâneos de Rousseau se distinguem dos monarcas do passado, conforme ele mesmo elucidou, pelo fato de que os monarcas de outrora eram senhores dos homens, enquanto que os contemporâneos são senhores dos territórios. Entretanto dada esta diferenciação o que Rousseau pretende elucidar é que a diferença fundamental entre as duas sociedades é que enquanto a família existe naturalmente com o fim da conservação dos seus membros, os regimes monárquicos existem com o fim de assegurar a manutenção e os interesses dos monarcas.

O que legitima um homem (um particular) ser senhor de outrem, ou de todo um povo, se todos os homens nascem livres? Esta é a questão fundamental para Rousseau. Ele contrapõe o que é legitimo ao que é legal. O que é legítimo tem uma conotação atemporal, e por vezes natural, como por exemplo, a premissa de que todos os homens nascem livres. Enquanto que o que é legal nem sempre é legitimo, mas apenas fruto de uma convenção, de uma legalidade fundada nas práticas sociais, como por exemplo, a inserção do direito pela força. “O mais forte não é nunca assaz forte para ser sempre o senhor, se não transforma essa força em direito e a obediência em dever. Daí o direito do mais forte, direito tomado ironicamente na aparência e realmente estabelecido em princípio.”

Legalidade e legitimidade constituem-se o crivo de Rousseau, todas as questões julgadas por ele fundamentais, devem passar por este crivo, que não é somente um crivo metódico, mas acima de tudo um crivo racional. Tudo é submetido a este crivo, desde a escravidão ao regime monárquico, o direito do mais forte, a partilha da terra, o que é natural ao que é convencional, e assim por diante. Para Rousseau os regimes, são na realidade frutos da necessidade que a natureza infligiu ao gênero humano, fazendo com que os homens abandonassem o que ele chama de estado natural, impondo-lhes a necessidade de unir forças através de um pacto a fim de manter a sua preservação. “Eu imagino os homens chegados ao ponto em que os obstáculos, prejudiciais à sua conservação no estado natural, os arrastam, por sua resistência, sobre as forças que podem ser empregadas por cada indivíduo a fim de se manter em tal estado. Então esse estado não mais tem condições de subsistir, e o gênero humano pereceria se não mudasse sua maneira de ser.”

Uma vez que os homens tiveram a necessidade de convencionar-lhes um pacto social, será correto afirmar que a monarquia é legítima, pois é uma decorrência de tal pacto? Para Rousseau ela pode ter o caráter legal, mas não pode se encarada como legitima uma vez que ela enquanto regime é na realidade uma deturpação do pacto social, pois só beneficia uma parte contratante, ou seja, o monarca, em detrimento de todo o povo. O contrato é regido por cláusulas que beneficiam todas as partes contratantes e não apenas uma parte, de forma que a monarquia não passa por este critério, pois ela (a monarquia) visa somente os interesses de um particular, o rei e encara toda a massa como escravos e não como participantes das deliberações da coisa pública. Esta é a cláusula respeitada pela monarquia conforme Rousseau: “Faço contigo um contrato, todo em teu prejuízo e todo em meu proveito, que eu observarei enquanto me aprouver, e que tu observarás enquanto me aprouver.” É evidente que esta passagem se refere a escravidão, mas de certa forma a subserviência dos súditos ao monarcas não está distante disto, uma vez que de nada participam, mas devem sim seguir todas as normas ditadas pelos monarcas, ou seja, um contrato todo em prejuízo do povo, pois este nada delibera.

A crítica de Rousseau a monarquia é deveras contundente, e evidência, que se de algum modo à monarquia respeita algum contrato, este contrato é todo feito em seu favor, em detrimento do povo, de forma que já não seria um contrato, pelo menos um contrato legítimo, dado que só beneficia uma das partes contratante. Pode haver algum contrato, algum acordo, nesta maneira de proceder? É evidente que não, e se ele por mais inusitado que seja, venha a existir, de forma alguma poderá ser considerado legítimo, pelo fato de que ele não representa um acordo entre as partes e sim um abuso. E o que é o abuso? O abuso é imposição absoluta de uma parte sobre a outra, não imputando nenhum direito à parte atingida, causando danos excessivos e desumanos.Para falar do contrato social e sobre o que legitima a autoridade de um particular sobre outro, ou sobre um determinado povo, Rousseau prefere analisar os abusos, que são: A escravidão, as guerras, e a monarquia. Já para falar acerca da república ou do corpo político, ele prefere antes, falar acerca do pacto social e de suas cláusulas tácitas. Quais são as cláusulas tácitas do pacto social? “Cada um de nós põe em comum sua pessoa e toda a sua autoridade, sob o supremo comando da vontade geral, e recebemos em conjunto cada membro como parte indivisível do todo.” O pacto social é a associação dos particulares com o todo, fazendo com que todos tenham os mesmos direitos, formando assim um todo indivisível. Será que Rousseau tinha em mente ao pensar o pacto, o princípio da isonomia? Pois se o pacto social passa a ser a norma e todos são iguais perante ele, então este pacto está fundamentado sobre o principio isonômico, ou seja, todos são iguais perante a lei / norma e possuem os mesmos direitos. Há neste sentido um elemento grego no pacto social de Rousseau?

O que é a república para Rousseau? A república ou corpo político, não é uma entidade física, como é na monarquia, sob a figura do rei. A república é o Estado e suas leis. Estado passivo quando contemplamos as suas leis e ativo quando é soberano, ou seja, quando delibera em favor da maioria. O povo são os associados, ou seja, aqueles que entram em acordo uns com os outros com o fim de se submeterem à vontade geral, que visa sempre respeitar a igualdade dos cidadãos perante a república, perante o estado. O pacto social, como associação só encontra possibilidade de existência numa república, pois ao contrário da monarquia, a república não visa o bem de um particular, mas em tese, visa o bem de todos os seus associados, respeitando o princípio da isonomia.

Mas o que faz da república ser tão preferível no pensamento de Rousseau? O fato de que somente ela une ao mesmo tempo legalidade e legitimidade. Legalidade, pois é ela fruto de uma convenção entre os homens, ou seja, é fruto de uma prática social, que engendrou uma norma, uma verdade, que considera que todos os homens são iguais. E legitimidade, pois respeita o princípio da igualdade entre os homens, como sendo algo natural e atemporal. Em tese, não há abuso na república, pois ela não visa o bem de um particular em detrimento de todos os associados, pois do contrário, ela já não seria república e sim monarquia. Ela é legítima por que não exclui, muito pelo contrário, em tese, ela deve ser um agente que inclui e mantêm os iguais em seus direitos comuns. Ela a república não insere o direito pela força, mas pela legitimidade e pelo acordo, e pelo assentimento de todos os seus associados. Dessa forma todos são participantes das deliberações da coisa pública, uma vez que ela é um contrato social e um contrato legítimo, sem abusos, em que todos entraram em acordo visando o bem de todos e não apenas de um grupo e muito menos de um particular.

Ao que tudo indica, não haveria outra maneira de expor a tensão existente entre os dois regimes, monarquia e república, pois tudo leva a considerar, no que tange ao pensamento de Rousseau, que a república é uma reação à monarquia, e a república lhe é necessariamente posterior. Trata-se de um complexo movimento de reforma política e social que se engendrou tacitamente na consciência dos homens, mas de forma incisiva na história.

Enfim, podemos perguntar: O que é a república para Rousseau? E temos a seguinte resposta: “Eu chamo, pois, república todo Estado regido por leis, independente da forma de administração que possa ter; porque então somente o interesse público governa, e coisa pública algo representa. Todo governo legítimo é republicano.” Está evidente a preferência de Rousseau pelo regime republicano em detrimento dos demais regimes. Mas ainda podemos continuar indagando: todo regime republicano é legítimo? E aqui encontramos uma dificuldade. Devemos admitir que de direito todo estado que arrevoga para si o status de republicano é de direito republicano, mas o será de fato? Uma vez que no pensamento de Rousseau qualquer Estado regido por lei pode ser chamado de republicano? Porem se num determinado Estado às leis que regem o Estado são configuradas para assegurar o bem de uma classe dominante ou até mesmo do legislador, esse mesmo Estado poderá ser legitimamente considerado republicano? Há também no que concerne ao Estado republicano uma tensão entre legitimidade e legalidade, pois para Rousseau, o Estado republicano verdadeiramente legitimo é justamente aquele que de fato é regido por leis, mas não somente isto; pois, tais leis devem representar e acima de tudo salvaguardar o interesse público, ou seja, o bem comum e não apenas os interesses de uma determinada classe ou individuo. Pois do contrário até mesmo a monarquia poderia ser confundida com a república e bastaria para isso ter um indeterminado de leis que beneficiasse a figura do Rei e que está leis fossem acatadas por todos por força ou pelo convencimento.

Podemos dizer que embora Rousseau não tenha de fato pensado sobre o que seria a deturpação do republicanismo, nos deixou também o seu critério, ou seja, não basta para um Estado ter leis para ser legitimamente republicano, tais leis devem visar o bem comum e o povo deve ser participe do poder, não deve o republicanismo ser somente representativo do povo, deve sim o povo do poder participar, ou melhor, deve o povo participar do soberano, que nada mais é que o próprio Estado quando delibera, quando age, pois de outra forma as decisões do Estado não representariam a vontade geral. Talvez o grande dilema do republicanismo seja lidar com as vontades individuais e com a vontade geral. Rousseau admite que a vontade do Estado pode coincidir com a vontade de um particular, mas não pode desejar que isto sempre deva ocorrer, pois do contrário correrá o sério risco de não ser o Estado uma república e sim qualquer outro regime. Será que o poder do pacto social (que foi no pensamento de Rousseau o responsável por engendrar no meio dos homens o republicanismo) foi o de fazer com que os homens desejassem mais o bem comum do que as realizações das vontades particulares? Estamos novamente dentro do turbilhão, vontade geral ou vontade particular? O que ocorre quando o Estado enquanto soberano age? Quem ele representa? O que vem a ser esta vontade tida geral?Deixemos que o próprio Rousseau se encarregue de responder: “A oposição dos interesses particulares tornou necessário o estabelecimento das sociedades, e a conciliação desses mesmos interesses particulares a tornou possível”. Podemos inferir que o soberano (o Estado quando delibera) concilia estas vontades que outrora estavam em tensão, harmonizando-as visando o bem comum. Dessa forma podemos dizer que sem esta luta entre as vontades, entre os interesses não poderia haver a sociedade humana, pois sem elas não haveria reconciliação, não haveria a sociedade humana e muito menos o republicanismo. É interessante notar que Rousseau tenha admitido tal idéia, que da tensão tenha surgido a ordem humana, é como perceber Rousseau inserido nas tradições judaico-cristãs que admitem que do caos primordial Deus fez nascer a ordem, talvez esta seja a marca da doutrina cristã no pensamento de Rousseau. Ao mesmo tempo podem outros dizer que ele faz-nos lembrar Maquiavel, quando este admite que deve haver um espaço público para as discussões, com o fim de solucioná-las, ou de encontrar alguma saída.O republicanismo é sempre geral.Falar sobre o que são as leisO que devemos a Rousseau? A primazia de ter refletido sobre essa temática tão habilmente, de forma que o seu legado chega até nós, como possibilidade de reflexão sobre os mais diversos problemas que a sociedade humana nos impõe enquanto agentes sociais que somos ou que deveríamos ser.

Du Contrat Social
Jean-Jacques Rousseau
Flammarion - GF
R$ 20,90

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