O cumprimento do "orai sem cessar" evangélico pelos chamados "Pais do Deserto", desde bem cedo, produziu uma incrível literatura difusora do hesicasmo, enriquecida, com o passar do tempo, pela reflexão empreendida por pensadores cristãos, alguns militantes da causa, outros críticos ferozes do movimento. A evolução da "casuística" e da "analítica" em torno do fenômeno hesicasta, desde Evágrio e Macário, na antiguidade tardia, até a Rússia à beira da revolução é o tema das pouco mais de cem páginas de "Saint Grégoire et la Mystique Orthodoxe", clássico da teologia cristã contemporânea de língua francesa, obra de uma das maiores vozes do pensamento ortodoxo do século passado, o "saint-sergiste" Jean Meyendorff.
Nascido em Neuilly-sur-Seine, em 1926, Meyendorff recebeu toda a sua educação teológica nesta verdadeira "agência" da espiritualidade eslava encravada no Ocidente que é o "Institut Saint-Serge", de Paris, tornando-se, mais tarde, um de seus mais ilustres professores. Na década de 1950, após sua ordenação ao presbiterado, transferiu-se para os Estados Unidos, vindo a lecionar no Seminário São Vladimir, do estado de Nova Yorque, e em prestigiosos centros universitários americanos como Harvard e Columbia. Conciliando a acadêmia com o altar e o iconostácio, Meyendorff foi um grande difusor do "ortodoxismo" e da cultura religiosa bizantina na América do Norte.
Com uma escritura marcada por uma clareza erudita e elegante, Jean Meyendorff compõe uma pequenina "crônica" histórica da teologia da oração na cristandade oriental, apresentando as contribuições das mais diversas fontes para o entendimento da devoção hesicasta, e os desdobramentos éticos e cívicos decorrentes de sua prática, tendo como pano de fundo uma paisagem intelectual onde transitam e se tocam a escolástica latina e o gnosticismo cristão, o vocabulário neoplatônico a serviço da interpretação bíblica e o nominalismo ocidental, o revival do paganismo promovido pela Renascença e o indispensável diálogo com o Islã emergente, a via eremítica e o cenobitismo, o Sinai e a Criméia, Gregório de Nissa e Serafim de Sarov.
Meyendorff mostra que os mestres hesicastas, embora tendo os anjos como companheiros e o mundo como um inimigo, repudiavam qualquer idéia de espiritualidade descarnada, platônica, avessa ao cotidiano. A busca pela quietude permitida pela oração de Jesus, só poderia se realizar através de uma participação ativa na implementação do Reino de Deus em plena turbulência da Terra, a despeito do império de Cesar ou da mitra. Essa desejada antecipação da vida futura aos crentes genuínos, constitiui uma marca incrível da antropologia espiritual hesicasta e de um existencialismo avant la lettre empolgante. A grande contribuição de Palamas ao reconhecimento do hesicasmo como algo canônico, permitido e desejado por Deus, foi realçar o caráter sacramental da mística hesicasta, trazendo-o para dentro de um único universo conceitual, e disso, preceituá-lo como regra de fé e atuação, não somente dirigida aos conventos ou aos sacerdotes, mas para todo o povo, independentemente de qualquer contingência. O que antes estivera muito próximo do anátema, com Gregório Palamas, recebe a dignidade teológica que o eleva ao status de alma da ortodoxia.
Com seu livro, Meyendorff também permite ao leitor uma generosa introdução há alguns conceitos basilares da fé ortodoxa oriental, direcionando a luz sobre temas pouco conhecidos em nossa realidade extremo ocidental, como a chamada teologia negativa, aspecto doutrinário tão caro aos cristãos orientais e que teve também no bispo de Tessalônica um defensor inspiradíssimo.
O segundo domingo da Quaresma é também conhecido pelos ortodoxos como o Domingo das Santas Relíquias. Preciosidades de tempos heróicos, as relíquias persistem pelas épocas, desafiando-as com seus misteriosos poderes de preservação dos legados da fé. Relíquia Sagrada, o hesicasmo, com o tempo e em atmosferas culturais as mais diversas, segue transformando vidas e consciências. Foi devido a renovação permitida pelo hesicasmo russo, que gênios como Dostoievski e Tolstoi tornaram-se verdadeiros mestres da alma humana.
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