sexta-feira, 21 de maio de 2010

2011: Ano François Delsarte


No próximo ano o mundo da Dança comemorará o bicentenário de nascimento do mestre maior François Delsarte, verdadeiro mito da cena francesa, pai espiritual do movimento de ruptura estética conhecido como Dança Moderna. Nascido em 1811, François Delsarte ingressou na vida do palco como cantor lírico e ator. Após a perda da voz, empreendeu um delicado e minucioso estudo do gesto humano, formulando uma sofisticada teoria da expressão corporal. Suas idéias sobre a linguagem do ritmo foram fundamentais para o surgimento das propostas coreográficas de Isadora Duncan, Mary Wigman e Martha Graham. Confira em Le Livre Messager extrait do artigo "François Delsarte: Por uma Dança da Alma", de autoria do ensaísta Henrique Marques Samy. Publicado na webpage da pesquisadora e crítica Eliana Caminada, o texto de Marques Samy constitui um bom acesso inicial aos que desejam conhecer uma das páginas mais marcantes da história cênica francófona.


Henrique Marques Samy


Já em seu tempo as teorias estéticas de Delsarte tiveram reconhecimento. Obtendo reputação como professor canto e recitação, foi professor de alguns dos mais notáveis artistas de seu tempo – entre eles, Mademoiselle Rachel, a mais proeminente atriz francesa de seu tempo, que durante toda a sua carreira foi a principal estrela da Comédie Française; e Jenny Lind, o lendário soprano sueco, apelidada em sua época de “Rouxinol Sueco”.

Além disso, formou toda uma geração de artistas e teóricos fundamentais nas artes cênicas a ele posteriores: foi professor de Émile Jaques-Dalcroze e Steele Mackaye, entre outros – e, graças a isso, seus ensinamentos foram capitais na obra de inúmeros mestres da dança moderna.

Alguns exemplos de inovadores da dança moderna influenciados pelo pensamento delsartiano são Mary Wigman, Marie Rambert e a escola Denishawn. Esses, por sua vez, mantiveram viva a obra de Delsarte através de seus alunos e seguidores – entre os quais podemos encontrar Pina Bausch, Martha Graham e Hanya Holm.

Delsarte transmitia seus ensinamentos através de aulas individuais e de um curso anual no qual trabalhou até o fim de sua vida, chamado "Cours d’esthétique appliqué", do qual trataremos a seguir. Estes cursos,posteriormente, foram ampliados e publicados por alguns de seus seguidores – entre eles Genevieve Stebbins, os Russells e Ted Shawn.

Os ensinamentos de Delsarte fundamentam-se em uma conexão entre o movimento, a voz, a expressão e a emoção humanas. De acordo com Ted Shawn, Delsarte acreditava que “os três princípios de nosso ser, vida, mente e alma, formam uma trindade”; e seu objetivo era obter, por meio de exercícios que agissem sobre esses princípios, uma perfeita harmonia – e, por meio disso, conduzir o homem a um alinhamento entre a expressão e o sentido.

A análise delsartiana sobre a anatomia e a expressão humana fundamenta-se em dois princípios: o Princípio da Correspondência e o Princípio da Trindade. Pelo primeiro, entendia que, tendo sido criado à imagem divina, o homem manifestava em seu ser “uma tripla causalidade”. Pelo segundo, superava a dualidade corpo-alma através da criação de uma identidade entre os movimentos do corpo e do espírito, que entendia como sendo reflexos de uma mesma e única realidade.

De acordo com a estrutura tríptica de Delsarte, o corpo humano é composto por três zonas principais: a cabeça, correspondente ao intelecto; o tronco, correspondente às emoções; e os membros, correspondentes ao que é propriamente físico ou animal. Delsarte delineou também três grandes ordens de movimento – oposições, paralelismos e sucessões – e nove leis que regiam os gestos, cada uma dessas relacionada às zonas principais do corpo humano; cada uma dessas zonas se subdividia em outras, que por sua vez eram ainda mais subdivididas, compreendendo assim um processo que resulta em uma extensa relação de milhares de movimentos descritos segundo seu significado, temporalidade, espacialidade e assim por diante.

De acordo com essa visão delsartiana, cada movimento corporal tem um sentido próprio, e a cada uma delas corresponde uma emoção específica.

Toda essa estrutura, por sua vez, ergue-se sobre um princípio básico da dança moderna, também observado por Delsarte: toda expressão resulta da tensão e relaxamento dos músculos do corpo humano. Mais tarde, Martha Graham cuidaria de desenvolver toda uma técnica tendo como base este princípio.

É preciso entender que, se Delsarte pretendia de alguma forma cientifizar o conhecimento humano acerca dos movimentos, tal ato tinha como fim uma universalização do treinamento artístico através da elaboração de métodos que pudessem ser utilizados para qualquer pessoa, independente de suas limitações físicas.

A proposta delsartiana não tinha como objetivo racionalizar o movimento, mas sim desvelar a harmonia existente entre a mente e a emoção humanas.

As descobertas de Delsarte abriram novas portas para todas as artes cênicas. Após elas, cada ator, dançarino ou cantor passava a dispor de todo o seu corpo como instrumento de expressão.

Com o pensamento delsartiano surgiu uma ligação direta entre o corpo e a alma, entre o físico e o espiritual; e foi a criação dessa nova linguagem corporal que deu o primeiro – e talvez mais importante – passo em direção a uma nova proposta de dança distante do formalismo e mais próxima do que, mais tarde,se consolidaria como sendo uma das mais importantes nos séculos posteriores.

Com o pensamento delsartiano, a dança passou a ter só um guia: a própria alma humana.


A íntegra do artigo de Henrique Marques Samy pode ser lida aqui.

Nenhum comentário:

Postar um comentário