terça-feira, 18 de maio de 2010

Maio, 1933: Quando a Literatura virou Cinzas


Kelly de Souza


O autor norte-americano Ray Bradbury publicou em 1953 o “Fahrenheit 451” , obra de ficção científica que narra um futuro onde os livros são proibidos, as opiniões pessoais são consideradas antissociais e qualquer pensamento crítico é suprimido. O número 451 refere-se à temperatura (em Fahrenheit) a qual o livro incendeia. A obra foi um sucesso imediato porque os livros sempre simbolizaram a essência da liberdade de expressão. Por isso mesmo, nem sempre foram respeitados pelas civilizações passadas, ou serão pelas futuras. Queimar livros em praça pública é uma prática histórica, quase um rito em muitas épocas e em muitas regiões do planeta. Esse tipo de queima remonta de séculos antes de Cristo, sendo em geral praticado pelo “Estado constituído” ou por fanáticos religiosos. O medo do poder da literatura sempre foi uma fraqueza dos homens totalitários, que ora representavam o Estado, ora a religião, ou sociedades anarquistas.

Durante o século XIII, a Igreja Católica lançou uma campanha brutal contra os cátaros (seita cristã politeísta), culminando na Cruzada dos Albigenses. Quase todos os textos cátaros encontrados foram destruídos, num gigantesco esforço para extirpar suas crenças heréticas, tendo sobrado pouca coisa. A cada século é possível identificar vários episódios onde os livros viraram cinzas, não sendo diferente no século XX. Em agosto de 1914, fase inicial da Primeira Guerra Mundial, a biblioteca da Universidade de Leuven, na Bélgica, foi incendiada pelo exército alemão como retaliação. Entre os milhares de volumes queimados estavam manuscritos góticos e renascentistas. A brutalidade chocou e despertou grande consternação em todo o mundo. O grande poeta romântico alemão Heinrich Heine (1797-1856), em sua obra “Almansor” (1821), relatava a queima do Alcorão durante a Inquisição Espanhola (”Onde se queimam livros, ao final vão se queimar também seres humanos”). Heine sabia das coisas e um século mais tarde seus livros foram torrados em praça pública numa das mais estarrecedoras queima de livros da história moderna da civilização, a Bücherverbrennung, uma ensandecida queima de obras literárias promovida por Hitler meses após assumir o poder.

Os fatos revelam a barbárie. Em 6 de abril de 1933, uma “coisa” chamada Associação Estudantil Alemã para Imprensa e Propaganda proclamou um “Ato Nacional contra o Espírito Não-Germânico”, de modo a “depurar” (säuberung) a literatura alemã através do fogo. Em 8 de abril, a mesma Associação, obviamente com todo apoio do Estado nazista, publicou uma coletânea de doze “artigos” que apresentavam os requisitos para se obter uma cultura nacional “pura”. Mas a tragédia aconteceu mesmo a partir de 10 de maio de 1933, quando os estudantes atearam fogo em mais de 25 mil livros considerados “impuros”. Na mesma noite, uma legião deles marchava em desfiles de protesto, carregando tochas e bradando palavras de ordem contra o espírito “não-alemão”. Pilhas e pilhas de livros eram queimadas por todos os cantos do país, ao som de bandas, discursos em uma insana apoteose ritualística contra qualquer intelectual não alinhado com o nazismo. O objetivo nacionalista, tendo a frente o sinistro Joseph Goebbels, ministro da propaganda, era realizar uma “limpeza” na literatura do país.

Autores como Einstein, Stefan Zweig, Heine, Thomas Mann, Freud, Erich Kästner, Erich Maria Remarque, Ricarda Huch, Brecht, Lion Feuchtwange, Alfred Kerr e centenas de outros foram banidos das bibliotecas alemãs. Mas nem todos intelectuais foram contra, como o poeta Hanns Johst, que justificou a queima alegando a “necessidade de purificação radical da literatura de elementos estranhos que possam alienar a cultura germânica”. As editoras reagiram com oportunismo, a burguesia se distanciou, se omitiu apavorada (deixando a responsabilidade aos universitários), alguns países fizeram a chamada “vista grossa” alegando que a queima era “fanatismo estudantil”, e os livros foram queimados rotineiramente até junho do mesmo ano.

Em 1933, o já celebre Thomas Mann (Prêmio Nobel em 1929) foi embora do país e nunca deixou de vociferar contra a situação (”nunca parei de meditar sobre minha situação. Se tivesse ficado ou retornado à Alemanha, talvez já estivesse morto. Jamais sonhei que no fim da minha vida seria um emigrante, despojado da nacionalidade, vivendo desta maneira!“).


Em 1934, a “lista negra” nazista já incluía mais de três mil obras proibidas. Reza a lenda que Freud ao saber do fato teria dito: “É um grande progresso em relação à Idade Média. Agora queimam meus livros, naquela época eu mesmo seria jogado na fogueira”. Mas muitos autores não conhecidos, alguns de grande talento, sequer conseguiram se resgatados pela memória. O ensaista Volker Weidermann, autor de “O Livro dos Livros queimados” (Das Buch Der Verbrannten Bucher), de 2008, conseguiu desenterrar 131 desses escritores (Lion Feuchtwanger, Emil Ludwin, Heinrich Mann, Theodor Plevier, Erich Maria Remarque, etc.), sendo que a maioria dos “queimados” nunca foi resgatada. Ficou a citação de Philip Roth: “Todos os escritores queimados pelo III Reich foram dignificados pelas chamas.”

Na semana passada, o “Dia da Queima” foi lembrado em Berlim e outras cidades. Homenagens, cerimônias e eventos marcaram a recordação daqueles tristes dias, quando o culto não era ao livro lido, mas ao queimado. Passados 77 anos, ainda dói.


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